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quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O legado do vento - 1ª parte.


— Eu não gosto! — Disse a garotinha. — É muito ruim! Não quero mais!

— Mas você já comeu quase tudo! Vamos lá! É para o seu próprio bem! — Disse a mulher que segurava a colher cheia. — Só mais três ou quatro colheradas!

Cuidadosamente ela reorganizou a colher, fora muito difícil misturar os ovos e as larvas na comida sem comprometer  completamente o gosto. Por um instante ela divagou sobre o fato de que se era capaz de fazer uma criança comer larvas e ovos de besouros, seria capaz de fazer qualquer um comer qualquer coisa. Então voltou logo a seu afazer, assegurar que o estomago daquela criança estivesse muito em breve recheado de criaturinhas repugnantes.

— Você é uma garotinha muito boazinha! E se comer tudo, a titia vai deixar você brincar com os aviõezinhos do papai! O quanto você quiser!

A garotinha era filha de um jovem piloto americano. E a mãe dela também trabalhava para as forças aéreas, como enfermeira. Ela nascera e crescera na base, estudava com outros garotos que também eram filhos de pilotos e afins. Mas ela nunca havia tido uma baba antes, nem nunca ouvira algum dos seus amiguinhos contar que tinha uma. Quando seus pais estavam ambos ocupados com os deveres da base, ela ficava na escola. Mas além de ser a primeira vez que ficava tanto tempo sem ver os pais ou ir a escola, ela gostava da baba.

Mas não fazia idéia do tempero especial de sua comida.

— Muito bem, acabou! Agora você pode ir lá pra cima brincar com os aviões enquanto em arrumo algumas coisas lá no porão, combinado? — A baba limpou a boca da menina e ajudou-a afastar a cadeira.

— Sabia que eu também vou ser piloto quando crescer? — Disse a garotinha enquanto corria e subia aos tropeços pela escada, tentando aproveitar o máximo de tempo possível para brincar com a coleção de aeromodelismo de seu pai.

A baba entrou no porão, e trancou novamente a porta atrás de si. Sabia que a menina passaria bastante tempo lá em cima. Desceu as escadas e aproximou-se do caldeirão.

— Piloto? A pobrezinha não percebeu que não vai ter a oportunidade de crescer. — Disse a si mesma enquanto jogava o farelo de ossos no liquido escuro.

O caldeirão não borbulhou. Não expeliu fumaça ou nada mais. Apenas recebeu o pó que lentamente era encharcado e começava a descer e desaparecer no liquido viscoso.

— Ô, Hécate, minha senhora! Traga a mim os embriões da noite para que juntas possamos despertar e escravizar Khephera e criar nosso exercito! — Então uma única bolha subiu do centro do caldeirão e eclodiu revelando um pequeno escaravelho que voou até a mão estendida da Tajana. — Venha meu amiguinho, você tem um bolo de aniversario para rechear!

O legado do Martelo - 1ª parte.


A ferida era muito feia. Provavelmente não sobreviveria mais que algumas horas. Não lhe restava forças para se recuperar e a grande ironia era que ele não queria realmente se salvar. Deparara-se com o grande anátema de seu destino, o gatilho maligno da profecia que o levaria a morte. Parecia extremamente natural que simplesmente aceitasse isso.

O beco escuro e sujo não era o sonho de funeral para ninguém, e um precursor da morte como ele merecia algo épico, memorável. No fim, não restava muito, só as memórias dos inúmeros assassinatos e a decepção que causaria a tantos que juraram vingança a ele. A marca doía muito no pulso, quase tanto quanto as perfurações de faca. A marca pedia para ser transmitida, era preciso escolher o herdeiro de seu legado, e não restara ninguém com quem se importasse no mundo. Escolheria alguém quase que aleatoriamente, seguindo premissas instintivas. Esquadrinhava os bandidos e os sem teto pelos quais passava em busca de um brilho no olhar, um sinal sutil que lhe indicasse que seria ao menos interessante tragá-lo para o estranho mundo da escuridão.

Aquele ato final não seria muito diferente de sua vida até então. Transmitir a tatuagem e os poderes relacionados a ela não era um presente nobre, apenas mais uma forma de levar alguém a morte prematura. A morte dele era advinda da marca, e lhe parecia extremamente precoce! Condenar, abençoar, obrigar, favorecer... Ele não conseguia decidir exatamente o que significaria transmitir aquilo a alguém. Convivera com alguns jovens envolvidos com a escuridão, alguns de certa forma até poderiam ser considerados seus pupilos. Lembrava-se da criança chinesa e sua forma diferente de pensar, do velho necromante inglês e sua estranha relação com o irmão mais novo também envolvido com estranhas feitiçarias do sangue. Lembrava-se da escocesa fria e do assassino italiano. Gostara muito dessas pessoas, eram todos merecedores daquela força. Mas, cada um a seu modo, já estavam demasiadamente envolvidos naquilo tudo, o legado não tomaria parte principal em suas vidas, seria um adendo, uma característica de segundo plano. Mesmo moribundo ele não queria isso, o poder merecia papel principal. Merecia mudar alguém tanto quanto mudara ele mesmo.

A dor era tanta que se encostou na parede para ajudar a se concentrar na própria respiração. Sua jaqueta ainda era capaz de esconder os ferimentos, e a penumbra daquele gueto disfarçavam bem todo o sangue em suas roupas.

— ‘E ae, chegado, tá querendo da boa?’ — Ele conseguira a atenção de um traficante. — ‘Tu parece tá precisando mesmo!’.

Mas aquele traficante não tinha nada de especial. Nenhum brilho nos olhos, nenhum sinal. Nem mesmo se estivesse gozando de plena saúde se daria ao trabalho de matá-lo.

— Não. ‘Chegado’, eu não quero. Só me deixe em paz! — Manteve a voz o mais firme possível. Se houve algum tremor, seria tido como o efeito ou a abstinência de alguma droga.

— Ei, o que você tem ai? — Um usuário aproximara-se e interrompera-os. — E quanto tem de cada?

Eis então, o brilho. Aquele drogadinho, aquele moleque tinha nos olhos algo que chamava a atenção. Algo que merecia o legado!

Jerricald desabotoou o coldre e destravou a arma.