A ferida era muito feia. Provavelmente não sobreviveria mais
que algumas horas. Não lhe restava forças para se recuperar e a grande ironia
era que ele não queria realmente se salvar. Deparara-se com o grande anátema de seu
destino, o gatilho maligno da profecia que o levaria a morte. Parecia
extremamente natural que simplesmente aceitasse isso.
O beco escuro e sujo não era o sonho de funeral para ninguém,
e um precursor da morte como ele merecia algo épico, memorável. No fim, não
restava muito, só as memórias dos inúmeros assassinatos e a decepção que
causaria a tantos que juraram vingança a ele. A marca doía muito no pulso, quase
tanto quanto as perfurações de faca. A marca pedia para ser transmitida, era
preciso escolher o herdeiro de seu legado, e não restara ninguém com quem se
importasse no mundo. Escolheria alguém quase que aleatoriamente, seguindo premissas
instintivas. Esquadrinhava os bandidos e os sem teto pelos quais passava em
busca de um brilho no olhar, um sinal sutil que lhe indicasse que seria ao
menos interessante tragá-lo para o estranho mundo da escuridão.
Aquele ato final não seria muito diferente de sua vida até
então. Transmitir a tatuagem e os poderes relacionados a ela não era um
presente nobre, apenas mais uma forma de levar alguém a morte prematura. A
morte dele era advinda da marca, e lhe parecia extremamente precoce! Condenar,
abençoar, obrigar, favorecer... Ele não conseguia decidir exatamente o que
significaria transmitir aquilo a alguém. Convivera com alguns jovens envolvidos
com a escuridão, alguns de certa forma até poderiam ser considerados seus
pupilos. Lembrava-se da criança chinesa e sua forma diferente de pensar, do
velho necromante inglês e sua estranha relação com o irmão mais novo também
envolvido com estranhas feitiçarias do sangue. Lembrava-se da escocesa fria e
do assassino italiano. Gostara muito dessas pessoas, eram todos merecedores
daquela força. Mas, cada um a seu modo, já estavam demasiadamente envolvidos
naquilo tudo, o legado não tomaria parte principal em suas vidas, seria um
adendo, uma característica de segundo plano. Mesmo moribundo ele não queria
isso, o poder merecia papel principal. Merecia mudar alguém tanto quanto mudara
ele mesmo.
A dor era tanta que se encostou na parede para ajudar a se
concentrar na própria respiração. Sua jaqueta ainda era capaz de esconder os
ferimentos, e a penumbra daquele gueto disfarçavam bem todo o sangue em suas
roupas.
— ‘E ae, chegado, tá querendo da boa?’ — Ele conseguira a
atenção de um traficante. — ‘Tu parece tá precisando mesmo!’.
Mas aquele traficante não tinha nada de especial. Nenhum
brilho nos olhos, nenhum sinal. Nem mesmo se estivesse gozando de plena saúde
se daria ao trabalho de matá-lo.
— Não. ‘Chegado’, eu não quero. Só me deixe em paz! —
Manteve a voz o mais firme possível. Se houve algum tremor, seria tido como o
efeito ou a abstinência de alguma droga.
— Ei, o que você tem ai? — Um usuário aproximara-se e
interrompera-os. — E quanto tem de cada?
Eis então, o brilho. Aquele drogadinho, aquele moleque tinha
nos olhos algo que chamava a atenção. Algo que merecia o legado!
Jerricald desabotoou o coldre e destravou a arma.
0 comentários:
Postar um comentário